19.11.12

Pela Manhã

A barba por fazer. Encaro o espelho, olhos marejados e cansados. Eu não quero alcançar o barbeador. O cabelo vai ficar assim mesmo, acabei de acordar, coloque um gel, já está bom. Me debruço na pia, e profundamente observo meu semblante. Não, ele não se mexe. Não, ele não pisca. Ele sequer move um músculo, não quer, não se dá o trabalho.

Seus dias têm sido um tanto vagos, sequências de eventos similares, dia após dia, a mesma ladainha. Me convenço de que a culpa não é minha, os demais tornam a minha vida mais entediante, não tenho como alterar isso. Convença-me de que posso mudar e sorrir.

Meus arpejos preenchidos de vazio não são reconhecidos em tardes de garoa e frio em São Paulo. Ele para e senta-se sobre os degraus do museu contemporâneo. Acende um cigarro, fazendo cara de paisagem, ele finge traga-lo em poucos instantes, que aos poucos torna-se cinzas. Os dias estão frios, o calor entre os dedos, o calor em minhas mãos, é fácil me enganar.

Não, eu não fumo. Só estou sendo dramático. Converto paisagem em um pequeno riso. Gosto de lhe fazer-me bobo. Um pouco mais, afinal, sempre foi um completo troglodita.

Em dias assim, tudo torna-se borrado. As vezes levanto e olho ao meu redor, mas só o que vejo são expressões aterradoras. Cabeças movimentando-se desengonçadamente sem olhos e narizes, apenas com suas bocas falantes e irritantes, álias, isso é redundante. É tudo tão borrado.

Pela terceira faixa não se ultrapassa. O limite é 80, deveria haver um mínimo, pois estás a 40. Mas é bom. O rádio não está borrado, está vivo. Cores chamativas indicando volume, tempo e canções. Eu me sinto mais vivo. A estrada não está mais tão nublada.

Ele encosta e desliga os fárois. Suspiro e solto um último ronco. Pisco duas vezes e me deparo com um sonâmbulo canino, está tão desligado quanto seu mestre. A geladeira tem cervejas. Mais uma noite esboçando versos em frente a uma tela. As ideias não surgem naturalmente. Normalmente quando se pensa em seu inalcançável, tudo se torna mais esperançoso. É difícil ficar te idealizando ano após ano, não tenho mais tanto material como antes, não sei o que se passa.

Repetitivo demais. Nenhuma outra mulher quis chutar o balde e dar-lhe um tapa na cara. Causo tanto constrangimento. É esse seu jeito desencanado, desligado, entortado, nada recalcado, e distraído. E ninguém disse que faz sentido. Interessante que não faça. Pois é tudo tão borrado, não há sentido em cabeças desengonçadas pulando de espaço em espaço. Ele acha que o mundo gira ao seu redor. O resto é tão borrado, teria de girar mais ao seu redor.

O sono traz lembranças de tempos bons. Alguns anos atrás. Tudo mais apaixonante e inocente. Engraçado e vivo. Durmo em paz, tentando encontrar-lhe, como havia feito tantas vezes, e você concordando em selar o contrato com beijos apaixonados.

Combinamos nos invernos de julho sempre nos vermos. Não hão de existirem bons dias assim, como antes. Eu sempre levei o cobertor e o vinho. A gente se agarrava na poltrona, e ela dizia que os dias eram melhores e não tão borrados. Eu sorria e, pela primeira vez, concordava que fazer cocégas em alguém era motivo para promessa de morte. Pareciam duas crianças, com o livre arbítrio adulto. Convenhamos, não há ideia melhor.

É por isso que espero. Não precisa levar o cobertor e nem o vinho, eu os guardo em casa. E espero por você só mais algumas vezes. A gente combina bem junto. O seu corpo é quente, eu gosto de observa-la enquanto dorme, você era tão desajeitada e graciosa. Tinha aquele ar angelical, mas não era isso que me atraia, e sim aquele trejeito inconsequente despretensioso que me deixava louco.

Daqui do alto do prédio, agora, ele só pode observar as luzes das estradas alaranjadas, fica tudo tão borrado quando ela não está por perto. Ele tende a acreditar que tudo faz sentido, que o tempo premiará persistência e compaixão. Não vá embora pela manhã, eu quero selar mais contratos ao seu lado.